quinta-feira, 12 de abril de 2007

A GENTE SE ACOSTUMA, MAS NÃO DEVIA...

A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos, e não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar prá fora. E porque não olha prá fora, se acostuma a não abrir de tudo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender a luz. E a medida que se acostuma, esquece o sol, o ar, a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus, porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduiche porque não dá tempo de almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber o sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a gastar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho para ganhar mais dinheiro para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a poluição. As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. A luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. As bactérias da água potável.

A gente se acostuma a cismas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.

Se a praia está contaminada, a gente molha só o pé e sua no resto do corpo. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.E se o fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem o sono atrasado.

A gente se acostuma prá não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito...

A gente se acostuma para poupar a vida, que as poucos se gasta e que, gasta de tanto acostumar, se perde em si mesma...

A gente se acostuma, mas não devia!!!!